O que de fato significa “atender” estudantes diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA) em nossas universidades? Será que temos políticas eficazes de atendimento? As famílias desses estudantes encontram espaços em nossas escolas para serem ouvidas e relatarem suas dificuldades? Podemos dizer que efetivamente estamos preparados para uma demanda crescente de estudantes com necessidades tão diversas? Tenho muitas dúvidas e divido aqui algumas inquietações.
Nos últimos anos temos observado, no Brasil e no mundo, um aumento significativo no número de pessoas diagnosticadas com TEA, fazendo com que a neurodivergência seja um termo comum, que saiu dos consultórios e foi para as escolas e para a comunidade. De acordo com o último relatório do Centro de Controle de Prevenção de Doenças (CDC), importante e respeitada agência de saúde pública americana, a estimativa atual divulgada no último relatório de 2021, a prevalência do TEA na população é de um para cada 36 crianças.
Cabe lembrar que esse número em 2004 era de um para 166 crianças e foi aumentando ao longo dos anos. Este fenômeno pode ser atribuído a uma série de fatores como maior acesso ao diagnóstico, maior número de profissionais preparados para realização do diagnóstico, maior conhecimento e conscientização sobre o transtorno por parte de pais e professores, compreensão mais ampla das manifestações do autismo, entre tantos outros.
De 2017 a 2021 tivemos no Brasil um aumento de 280% no número de estudantes diagnosticados com TEA nos ensinos infantil, fundamental ou médio. Já na educação superior, de acordo com os dados do Censo/INEP, o número de Transtornos Globais do Desenvolvimento, que incluem o TEA, aumentou de 4.018 para 6.063 entre os anos de 2021 e 2022. Como consequência desse aumento, cresce a dificuldade em incluir essas pessoas principalmente na educação superior, no qual a complexidade de atendimento é definitivamente maior.
Essa complexidade deve-se principalmente à transição de uma estrutura de apoio que no ensino fundamental e médio é mais definida e direta; à complexidade acadêmica e social mais exigente; à necessidade de maior autonomia e independência; à transição e adaptação mais exigentes, dado que há grandes mudanças na rotina e no ambiente, e finalmente falta de política e recursos educacionais capazes de suportar a diversidade de necessidades manifestadas pelos estudantes TEA.
Um problema adicional somado aos já citados é a subnotificação. Ela pode ser atribuída principalmente ao diagnóstico tardio, decorrente da manifestação sutil de comportamentos esperados, da falta de acesso à avaliação adequada e principalmente ao receio da discriminação, do preconceito e dos estigmas gerados por um diagnóstico declarado. Fato inegável é que se os problemas se acumulam pelo diagnóstico conhecido, eles são ainda maiores quando a instituição não o conhece e os estudantes são colocados em salas de aula, sem ao menos disputar as chances de atendimento mais adequado.
Na tentativa de proteger crianças e adolescentes com TEA, garantindo-lhes direito à educação, muitas leis municipais, estaduais e federais têm sido criadas, principalmente nos últimos anos. Apesar dos avanços na legislação, como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), criada em 2015, ainda há um longo caminho a ser percorrido para garantir a inclusão efetiva de estudantes com TEA no ensino superior. Não pode nem deve se tratar de uma questão de cumprimento de leis.
Acima delas estão o dia a dia do processo ensino/aprendizagem. Enfrentamos problemas como falta de capacitação profissional, infraestrutura inadequada e muito preconceito. A realidade brasileira, marcada por desigualdades sociais e educacionais, impõe desafios adicionais para a inclusão desses estudantes.
Em outros países ao redor do mundo o cenário é variado. Países com sistemas educacionais mais avançados e políticas inclusivas robustas, como algumas nações europeias e os Estados Unidos, demonstram efetivamente maiores esforços na adaptação do ambiente universitário para atender às diversas necessidades dos estudantes com TEA.
Programas de apoio personalizados, capacitação de professores e funcionários, e adaptações curriculares são algumas das medidas implementadas. No entanto, mesmo nesses países, não é uma temática simples de ser abordada. Ainda existem desafios significativos, principalmente relacionados à compreensão e aceitação das características únicas de cada estudante com TEA. Uma diversidade de comportamentos que requer ações personalizadas.
Por parte da comunidade, de forma geral o que se observa é uma pressão por atendimento inclusivo em todos os níveis de ensino. Isso é entendido como um direito que deve ser preservado e devidamente respeitado. No entanto, a inclusão do estudante TEA persiste como um grande desafio que se inicia na família, passa pelo atendimento especializado, pela sociedade e chega à educação formal. Isso pressupõe uma mudança de cultura, e por esse motivo torna-se uma tarefa tão difícil.
Não se trata apenas de fazer adaptações curriculares e metodológicas, de se introduzir novas tecnologias de ensino. É preciso ir além, pensar na criação de ambientes de aprendizado adaptados, verdadeiramente inclusivos e acolhedores. É preciso não apenas capacitar continuamente professores e funcionários, mas criar estruturas de suporte acadêmico e pessoal que incluam apoio e mentoria para a realização das tarefas acadêmicas.
Nosso desafio fundamental no ensino superior, além do preparo para uma profissão, inclui o preparo para a inclusão no mundo do trabalho, no qual o estudante TEA em particular, tem que superar questões sociais, de comunicação, de processamento das informações e sensibilidade aos estímulos de forma geral. E para esse enfrentamento deve ser devidamente preparado durante seu período de formação: ele precisa aprender a lidar com suas próprias dificuldades.
Todos esses desafios requerem um compromisso institucional contínuo e a colaboração entre educadores, administradores, estudantes, famílias e profissionais que atendam esses estudantes. O atendimento requerido não é simples e não é pontual. É preciso que a comunidade acadêmica esteja preparada e que seja continuamente educada para evitar não apenas que o preconceito se instale, mas para evitar que os sentimentos de pena não se instalem.
Estamos falando de estudantes que requerem mais atenção, mas que não são piores que os demais. Possuem habilidades, às vezes extraordinárias e mal aproveitadas, e competências que devem ser compreendidas, respeitadas e valorizadas. Estamos falando de pessoas que têm direito à educação de qualidade e ao preparo profissional oferecido pela instituição e mais, de um número de estudantes crescente e subnotificado, que não pode nos pegar desprevenidos.
Não há mais espaço para dúvidas e adiamentos. As instituições precisam refletir e estudar a questão da inclusão de estudantes TEA. Criar políticas para o atendimento desses estudantes não pode estar apenas no papel, mas em ações de conhecimento, respeito, apoio e preparo de cada cidadão, sejam eles TEA ou não.
Fonte: Revista Ensino Superior