Neste ano, convidada para falar sobre inteligência artificial no 26° Fnesp, em painel da importância do fator humano na formação integral, lembrei-me de quando me formei professora, em 1987, aos 17 anos. E de quando entrei na sala de aula, em uma escola pública, na periferia de Guaratinguetá, SP.
A sala de aula era numa casa adaptada, enquanto o prédio oficial estava em construção. A lousa, uma tinta na parede. Cômodos apertados, uma carteira de cada tamanho e os alunos, alguns até mais velhos que eu, assustados por terem de aprender espanhol, minha disciplina, que eu também aprendia ao mesmo tempo que ensinava.
Não passou tanto tempo assim e me vejo em uma realidade totalmente diferente. Um cenário recheado de tecnologia, novas abordagens educativas, novos desafios, mas, ao mesmo tempo, trazendo à tona o lugar onde se encontra a maioria dos professores em pleno século 21: presos a modelos didáticos tradicionais, sem acesso aos recursos tecnológicos disponíveis ou sem o conhecimento necessário para utilizá-los. Isso limita a capacidade de otimizar processos administrativos, planejamento, execução e avaliação de atividades, além de restringir o diálogo com uma nova geração de estudantes, que exige atenção diferenciada em sua formação pessoal, profissional, ética e crítica.
Diante disso, surgem algumas questões fundamentais: em que nível realmente se encontram os discursos, reconhecimento, diferenças e as ações sobre educação digital, transformação digital, alfabetização digital? Como as habilidades e competências profissionais nessas áreas atendem gestores, colaboradores e docentes? Em que estágio se encontra o que já se implementou e quais as estratégias para acompanhar os resultados alcançados?
Como as IAs generativas estão sendo usadas entre os estudantes e quão qualificados estão os docentes para acompanhar, orientar e monitorar o uso dessa tecnologia em sala, presencial ou virtual, e fora delas?
No início de outubro, em Puebla, no México, representando o Consórcio Sthem, tive a oportunidade de falar sobre os programas de formação docente para o encontro anual da RealCup, uma rede de associações latino-americanas e caribenhas de universidades privadas, com o objetivo de intercâmbio e cooperação no desenvolvimento do ensino superior.
Com o tema Qualidade inclusiva e relevância dinâmica em universidades privadas na América Latina e Caribe, a palestra de abertura foi realizada pelo historiador Paul Le Blanc. Sua fala sobre passado, presente e futuro da educação superior veio ao encontro de meus pensamentos sobre o que vivi ao longo dos anos como professora, iniciando minha carreira numa singela e precária escola pública, passando por destacados colégios particulares, ingressando no ensino superior e, hoje, capacitando docentes para uma educação de valor. Sua apresentação contou com mais perguntas que respostas, principalmente no que tange à introdução das IAs generativas na educação. E não posso deixar de compartilhar algumas delas.
É fato que os estudantes usam essas IAs. No entanto, precisamos analisar e interpretar o tipo de comunicação que utilizam, e que tipos de resultados estão alcançando. Então, qual é o papel da educação nesse contexto? Quanto estamos vivendo com o que é falso? Sabemos distinguir o que é real e verdadeiro? O que significa ser humano em um mundo onde não somos mais os detentores do conhecimento? A resposta está na função da universidade?
Quem ingressa no ensino superior está em busca de uma formação e preparação para realizar ou concretizar que tipo de sonho ou desejo?
De acordo com a linha de raciocínio de Le Blanc, é preciso revitalizar as humanidades, resgatar conhecimentos que a filosofia, a antropologia, a sociologia, entre outras, nos levavam a viver, experimentar e questionar sobre o processo das coisas, e não só a desfrutar do produto. Nossas salas de aula, nosso ensino vive o processo? O processo do pensamento? E hoje quando olhamos à nossa volta, para o nosso mundo, podemos afirmar que ele funciona bem?
Essa reflexão me leva de volta ao ponto central de nossa discussão sobre educação e tecnologia: o desafio não está em resistir às inovações, mas em como integrá-las de maneira que fortaleçam o papel da educação na formação de indivíduos plenos, críticos e éticos. As tecnologias, incluindo as IAs, são ferramentas poderosas, mas cabe a nós, educadores, garantir que seu uso não se sobreponha ao que é mais essencial: a conexão humana e o desenvolvimento do pensamento crítico.
De modo geral, o evento, como um todo, não deixou de lado uma visão de esperança e de revitalização de aspectos esquecidos da sociedade e do valor das pessoas, do conhecimento, da criação, da transformação.
Atravessando diferentes tempos e contextos, uma constante se mantém clara: a educação é um processo profundamente humano. Mesmo com a chegada de tecnologias disruptivas, como as IAs generativas, a essência da formação integral não reside apenas no que se aprende, mas em como e por quem se é ensinado.
A tecnologia pode nos oferecer ferramentas inovadoras, mas são as mãos que as guiam — os professores — que realmente moldam o futuro. O desafio agora é equilibrar esse mundo digital, cada vez mais rápido e complexo, com o resgate das humanidades, da reflexão e do pensamento crítico.
O verdadeiro valor da educação está não apenas em capacitar mentes, mas em formar seres humanos plenos, capazes de questionar, criar e transformar. Essa é a travessia que precisamos conduzir juntos: uma jornada que exige coragem, inovação, mas, sobretudo, humanidade.
Fonte: Revista Ensino Superior