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Inteligência social e IA: o futuro das relações na educação

Written by Redação | May 12, 2025 1:22:47 PM

Em tempos em que inteligência humana e inteligência artificial se entrelaçam, testemunhamos uma transformação que, se por um lado fascina, por outro interpela: a ascensão da IA no cotidiano escolar. Sistemas adaptativos de aprendizagem, assistentes virtuais e algoritmos de avaliação automática já não pertencem mais ao terreno imaginário dos docentes; eles frequentam as salas de aula, ora como aliados, ora como desafios silenciosos à qualidade das relações humanas.

Se a inteligência artificial representa um avanço técnico incomparável, resta a pergunta: quem ensinará, em tempos de máquinas que respondem em segundos, a arte ancestral da escuta paciente, da empatia genuína e da convivência ética?

A introdução da IA na educação não apenas reformula métodos e conteúdos, ela demanda uma reconstrução das próprias bases das relações educativas. Em um ambiente em que o diálogo pode ser mediado por algoritmos e a avaliação por padrões automatizados, a inteligência social, esta capacidade humana de ler, interpretar e agir com sensibilidade nos encontros com o outro, torna-se não um adorno, mas um fundamento imprescindível.

É nesse contexto que este artigo propõe refletir:

– De que maneira a inteligência artificial está impactando as relações entre docentes e discentes?

– Como a inteligência social pode (e deve) ser cultivada para equilibrar o avanço tecnológico com a essência da educação como processo humano?

– Que futuros possíveis se desenham para a escola, diante dessa encruzilhada histórica?

Para responder,  esta nossa conversa organiza-se em quatro blocos: os fundamentos da inteligência social, o impacto da inteligência artificial nas relações educativas, os cenários prospectivos para a escola do futuro e a inclusão.

O mercado de trabalho e a vida em sociedade demandam não apenas indivíduos tecnicamente competentes, mas sujeitos dotados de habilidades interpessoais refinadas. A inteligência social, capacidade de compreender, interpretar e interagir eficazmente com outras pessoas, emerge, assim, como competência-chave para o sucesso profissional e para a convivência ética.

Fundamentos da inteligência social

O conceito de inteligência social foi introduzido por Edward Thorndike (1920) ao defini-la como a habilidade de “compreender e gerir homens e mulheres, meninos e meninas, e agir sabiamente nas relações humanas”. Posteriormente, Daniel Goleman (2006) aprofundou essa noção ao articular a inteligência emocional e a inteligência social como competências interdependentes, essenciais para a vida pessoal e profissional.

Entre os principais componentes da inteligência social destacam-se:

– Empatia cognitiva e afetiva;

– Capacidade de leitura emocional do ambiente;

– Gestão de impressões e influência positiva;

– Construção e manutenção de redes de confiança.

De forma bem-humorada, mas profundamente verdadeira, poderíamos dizer que a inteligência social é a habilidade de entender que, muitas vezes, o mais importante não é ter razão, mas saber como ter razão sem perder o amigo (ou o emprego).

No contexto atual, em que a automação e a inteligência artificial assumem tarefas técnicas, o diferencial humano repousa justamente nas habilidades sociais. O Relatório The future of jobs (Fórum Econômico Mundial, 2023) destaca competências como empatia, negociação, gestão de pessoas e resolução de problemas complexos como essenciais.

As empresas buscam profissionais que se comuniquem eficazmente; liderem com sensibilidade; resolvam conflitos de maneira colaborativa; se adaptem a ambientes multiculturais e dinâmicos.

Nesse cenário, a inteligência social não é mero adereço de personalidade, mas ativo estratégico, quase uma moeda corrente no mercado de trabalho contemporâneo, uma vez que as relações humanas, quer no ambiente familiar, escolar, comunitário ou profissional, exigem percepção sensível, comunicação adequada e comportamento ético.

Desde os primeiros anos, é fundamental que a escola valorize o desenvolvimento socioemocional. Iniciativas como rodas de conversa, programas de letramento emocional e projetos de mediação de conflitos são exemplos eficazes.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017) já reconhece as competências “autoconhecimento e autocuidado” e “empatia e cooperação” como componentes obrigatórios da formação integral.

A universidade, por sua vez, também deve superar a formação puramente técnica, integrando disciplinas e práticas que desenvolvam liderança ética, inteligência emocional e responsabilidade social. Cursos como o da PUC-Rio (Curso de Extensão em Inteligência Social) e iniciativas de formação socioemocional em instituições públicas, como a UESC, demonstram um movimento promissor.

Como observa Goleman (2006), “as competências emocionais e sociais não são acessórios do conhecimento acadêmico: elas o viabilizam em toda sua plenitude”.

A inteligência artificial (IA) vem transformando profundamente a educação, promovendo desde a personalização da aprendizagem até a automação de processos avaliativos. 

Plataformas adaptativas, assistentes virtuais, sistemas de feedback automático e algoritmos de análise de dados educacionais tornam o processo de ensinar e aprender mais ágil, responsivo e personalizado (Luckin et al., 2016).

Entretanto, junto a esses avanços, devemos insistir em questões cruciais:

Como a IA impacta a qualidade das relações humanas na escola? Como docentes e discentes interagem entre si e com as tecnologias? Que tipo de formação humana estamos incentivando? Que tipo de pacto ético docentes e discentes estabelecem entre si e o uso de IA nas atividades de aprendizagem?

Impactos da IA nas relações educacionais

1. Entre docentes e discentes 

– Mudança de papéis: professores se tornam mais facilitadores do que transmissores de conhecimento (Salmon, 2019).

– Interações mediadas por tecnologia: plataformas de ensino híbrido e tutores virtuais podem reduzir o contato humano direto, caso não haja intencionalidade pedagógica.

– Potencial para comunicação empática: paradoxalmente, a IA pode liberar tempo dos docentes (ao automatizar tarefas burocráticas) para que se dediquem a conversas mais profundas com seus alunos, desde que essa prioridade esteja clara.

2. Entre estudantes

– Colaboração digital: ferramentas como fóruns, chats educacionais e projetos colaborativos on-line ampliam possibilidades de interação, mas também podem gerar isolamento se não forem bem orientadas.

– Desafios da comunicação não verbal: a ausência de sinais sutis, como expressões faciais e tons de voz, em ambientes digitais, exige que a inteligência social dos alunos seja ainda mais refinada para interpretar mensagens corretamente.

3. Entre estudantes e sistemas

– Interação homem-máquina: a IA educacional ainda carece de “calor humano”. 

– Embora personalize trilhas de aprendizagem, não substitui a necessidade de relações afetivas, reconhecimento mútuo e validação social.

– Diante desse cenário, a inteligência social não se torna obsoleta — pelo contrário, ela se torna mais urgente:

– Habilidades como empatia, escuta ativa, gestão de conflitos e leitura emocional ganham ainda mais valor.

– A capacidade de compreender o outro torna-se um diferencial vital em um ambiente em que o “outro” pode ser tanto um colega de classe quanto um algoritmo.

– Competências como pensamento crítico e ético precisam ser ensinadas para que estudantes não apenas usem IA, mas também questionem, regulem e humanizem seu uso.

A escola do futuro: cenários possíveis

1. Cenário positivo ("integração humanizada")

– IA como apoio: a tecnologia facilita processos, mas os valores humanos continuam no centro da educação.

– Formação de professores enfatiza inteligência emocional, empatia digital e mediação de conflitos em ambientes híbridos.

– Projetos interdisciplinares que combinam tecnologia e humanismo florescem.

2. Cenário de risco (“automação fria”)

– Redução das relações presenciais autênticas em prol de processos automatizados.

– Formação de alunos técnicos, mas emocionalmente desconectados.

– Crescimento da solidão, da incompreensão e da intolerância nas instituições educativas e, consequentemente, fora delas.

3. Cenário de transformação (“educação para a ética da inteligência”)

– A escola torna-se um espaço de formação crítica sobre as tecnologias.

– Inteligência social e inteligência artificial são ensinadas de forma integrada.

– A inteligência relacional é vista como competência estratégica, tanto quanto a alfabetização digital.

A inclusão na era da IA: um compromisso inadiável

Ao projetarmos os cenários para a escola do futuro, torna-se imprescindível incorporar a pauta da inclusão como eixo estruturante da inovação educacional. Já acompanhamos como a Unesco (2021) defende que a educação inovadora deve ser antes de tudo inclusiva. A introdução da inteligência artificial traz imensas possibilidades, mas também pode ampliar desigualdades preexistentes, caso não sejam adotadas políticas e práticas conscientes de equidade.

1. Inclusão material e digital

– O acesso a dispositivos tecnológicos, à conexão de qualidade à internet e a plataformas digitais seguras ainda não é uma realidade para muitos estudantes e professores no Brasil e no mundo.

– Sem investimentos em infraestrutura tecnológica inclusiva, a IA poderá favorecer ainda mais os já privilegiados, ampliando a chamada “brecha digital”.

– Políticas públicas e projetos institucionais devem assegurar que a inovação tecnológica caminhe lado a lado com a democratização do acesso.

2. Inclusão física e sensorial

– Estudantes com deficiência física, auditiva ou visual precisam de ambientes e recursos digitais que respeitem e potencializem sua aprendizagem.

– Tecnologias assistivas, como leitores de tela, softwares de comunicação aumentativa, interfaces de comando por voz devem ser integradas às propostas educacionais baseadas em IA.

– A arquitetura física e virtual das escolas também precisa acompanhar essa transformação, assegurando acessibilidade universal.

3. Inclusão de estudantes neurodivergentes

– Alunos com autismo, TDAH, dislexia, entre outras neurodivergências, exigem abordagens pedagógicas flexíveis, sensíveis e adaptativas.

– A IA, se bem utilizada, pode personalizar trilhas de aprendizagem que respeitem diferentes ritmos, estilos cognitivos e modos de interação social.

– Contudo, é necessário que docentes e gestores estejam formados para interpretar os dados educacionais de maneira ética e humanizada, evitando reducionismos diagnósticos.

4. Inclusão socioemocional

– Além do acesso físico e tecnológico, é preciso garantir a inclusão emocional e relacional dos estudantes.

– O desenvolvimento da inteligência social será fundamental para que ambientes híbridos não sejam frios e excludentes, mas sim acolhedores, colaborativos e diversos.

– A inserção da inteligência artificial na educação é inevitável e desejável. Contudo, ela nos convida a uma tarefa ainda maior: a de reafirmar o valor insubstituível da inteligência social. 

Em um mundo em que respostas automáticas se multiplicam, será a capacidade humana de perguntar, ouvir, acolher e conviver que sustentará a esperança de uma educação verdadeiramente transformadora. Mais do que preparar estudantes para lidar com algoritmos, precisamos prepará-los para lidar consigo mesmos e com o outro, com responsabilidade, empatia e ética. A escola do futuro, portanto, não será apenas aquela que dominará as tecnologias emergentes, mas aquela que souber humanizá-las. Porque, em última instância, educar é ensinar o que nenhuma máquina será capaz de realizar: a arte de ser humano.

Portanto, a escola que souber humanizar as tecnologias será também aquela que saberá incluir, acolher e fortalecer a diversidade humana em todas as suas expressões.

A inteligência artificial poderá personalizar trilhas de aprendizagem, mas caberá à inteligência social garantir que cada trilha seja trilhada com dignidade, pertencimento e esperança.

Em última instância, o futuro da educação será tanto mais tecnológico quanto mais for humano, inclusivo e sensível às singularidades de cada estudante.

Fonte: Revista Ensino Superior