Em um contexto alarmante no que se refere à saúde mental dos estudantes universitários, olhar para o bem-estar dos alunos deixa de ser uma opção para as instituições de ensino: agora, garantir um espaço saudável e acolhedor deve ser a norma. Por essa razão, a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) estabeleceu um novo eixo curricular para o curso de medicina. O objetivo é garantir a formação de profissionais mais empáticos e cientes da vulnerabilidade humana.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é mundiamente a quarta causa de morte mais recorrente entre a população jovem. Na medicina, os índices são ainda maiores. De acordo com a pesquisa Suicidal Thoughts and Behaviors Among First-Year College Students: Results From the WMH-ICS Project, que envolveu estudantes da Austrália, Bélgica, Alemanha, México, Irlanda do Norte, África do Sul, Espanha e Estados Unidos, a ideação suicida aparece em 10,6% e a tentativa de autoextermínio em 1,2% (*).
Para Evelin Muraguchi, coordenadora do curso de medicina da PUCPR no campus Londrina, esse sofrimento se dá por alguns fatores, como o cenário competitivo do curso, a grande carga teórica que impossibilita o descanso dos estudantes, entre outros aspectos. “Algumas escolas optaram por observar esse fenômeno como um sinal de que o cuidado com a saúde mental e física de quem vai cuidar da saúde do outro precisa ser trabalhado ao longo de todo o curso, com todos os estudantes e professores envolvidos, e não apenas aqueles que já apresentam sinais externos de sofrimento”, explica.
“Antes, os cursos se preocupavam muito com a formação técnica. Mas de uns vinte anos para cá, observamos que somou-se a isso a formação humanística”, acrescenta a coordenadora. Assim, em 2018, foi estabelecida a reconfiguração do currículo de medicina da PUCPR. Na nova matriz, uma disciplina de 45 minutos passou a fazer parte de cada semestre da formação. “À medida que o curso evolui, vamos alterando os objetivos.”
Durante o primeiro semestre, o foco é na escuta dos ingressantes. “São alunos que conseguiram primeiro lugar nos cursinhos e, por isso, receberam muita atenção. Passaram no vestibular de medicina e têm uma autoestima bem alta. Com o passar do primeiro mês, esses estudantes observam que tudo o que aprenderam no cursinho já não dá certo na universidade. O método de decorar o conteúdo e aplicá-lo em exercícios não funciona no ensino superior, é preciso integrar esse conhecimento para pensar na responsabilidade de cuidar do outro”, diz. “Isso gera uma preocupação muito grande e abre margem para a síndrome do impostor, os leva a acreditar que passaram por acaso. Quando perguntamos para eles ‘quem se acha o pior aluno da turma’, todos levantam a mão.”
Em grupos, os educadores discutem com os estudantes sobre as dificuldades de adaptação, destacando a importância do autocuidado. As portas também são abertas para que egressos possam trocar experiências com os discentes. Ao longo dos semestres, momentos de integração com outros alunos, conversas com foco na construção de carreiras e auxílio no preparo do currículo lattes são alguns dos objetivos que passam a fazer parte da jornada acadêmica.
Um pilar importante da atual matriz curricular é a mentoria realizada por professores a partir do quarto semestre, quando os alunos passam a se reunir em grupos com um médico docente que os acompanha até a formatura. “Escolhemos professores com perfil de acolhimento, destacados pela experiência profissional de bom atendimento aos pacientes”, pontua Evelin.
Este ano marca a conclusão dos estudos da primeira turma a passar pela nova matriz curricular. Em balanço sobre a experiência, Evelin destaca os primeiros resultados. “Os estudantes se apresentavam muito ansiosos antes das provas, sentavam chorando no corredor e não conseguiam realizar a avaliação. Já realizamos muitos atendimentos em decorrência de estresse e observamos que isso tem diminuído bastante ao longo dessa implantação”, relata.
A coordenadora ainda destaca que o olhar positivo sobre a mudança não é unânime, mas pontua a possibilidade de negociação com aqueles que não se apresentam totalmente abertos. “Existem aqueles que enxergam essa disciplina como perda de tempo, como um período que poderia ser dedicado ao estudo das ‘matérias importantes’ do curso. Mas consideramos importante que essa disciplina esteja, pelo menos, disponível a todos”, pondera. “Negociamos com eles para que façam as tarefas. Há a possibilidade de somar 25% de falta, e em um mecanismo de autonomia, esses estudantes podem decidir quais aulas irão ou não frequentar.”
Para dar conta do acolhimento de seu corpo discente, o Centro Universitário Facens, em Sorocaba, instituiu o EnLace, um laboratório de colaboração emocional. O objetivo do espaço é promover “florescimento” socioemocional e bem-estar daqueles que fazem parte da instituição.
À frente do EnLace, Raquel Barros, psicóloga e coordenadora, conta que o laboratório permitiu integrar a questão socioemocional à matriz curricular. “A partir desse espaço, promovemos intervenções em sala de aula e construímos um currículo para que os alunos entrem em contato com diversas competências socioemocionais”, salienta.
Seguindo a lógica de um metrô, o EnLace possui quatro rotas: consciência sustentável, mente inovadora, atitude empreendedora e visão global. “É uma viagem que trabalha conteúdos sobre propósito de vida, intervenções em sala de aula ao lado dos professores, com temas que variam de acordo com a construção do currículo – tivemos uma intervenção sobre diversidade no curso de odontologia, por exemplo –, e intervenções no contexto da faculdade, como espaços de descompressão, onde são realizadas atividades mensais”, detalha Raquel.
“Criamos um ecossistema para que o aluno entenda que não basta adquirir conhecimentos técnicos, é preciso olhar para o emocional.” A chegada do laboratório também permitiu que a instituição acessasse mais estudantes. “Falar de saúde mental para estudantes de engenharia era um desafio, os alunos não demonstraram tanto interesse. Fomos trabalhando essa perspectiva, de mostrar a importância do tema, e agora já estamos incluídos na dinâmica acadêmica”, comenta.
Outro ponto destacado por Raquel é a integração entre o corpo discente e os funcionários da instituição. “Há um maior sentimento de comunidade. Entendo também que diminuíram casos mais graves, como episódios de automutilação ou depressão profunda. Construímos protocolos mais humanos e instrumentalizamos os professores para que estivessem melhor preparados no acolhimento dos alunos”, lista.
“Falamos no florescimento. O que fazemos aqui é apoiar o aluno a se conhecer e a florescer para que não precise tratar da saúde mental. Estamos intimamente ligados com esse despertar e a ajudar o aluno a fortalecer suas próprias ferramentas de cuidado”, acrescenta a coordenadora do EnLace.
Na avaliação de Raquel, existe um limiar tênue entre o que é responsabilidade das instituições de ensino superior e o que não é. “Há um mito de que trabalhar o bem-estar não cabe à universidade, afinal o seu papel é ensinar. Mas como ensinar se a pessoa não está bem? É importante que a IES construa um colo. Cuidar da saúde mental e do florescimento dentro da universidade desmistifica o papel das instituições. A instituição família deixa de ser a única responsável pelo acolhimento, e a instituição universidade deixa de ter apenas o papel de ensinar.”
*Cabe destacar que o suicídio não resulta de um fator único, mas da junção de diversos fatores como depressão, transtornos mentais, problemas familiares, bullying, estresse, entre outros.
Se você estiver passando por um momento difícil, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece atendimento gratuito e sigiloso por telefone (no número 188), por e-mail e por chat, 24 horas por dia, ou presencialmente (confira os endereços no site da entidade).
Fonte: Revista Ensino Superior