Educação midiática pode ser aliada para qualidade do ensino
Após cursarem a disciplina de educação midiática e terem sido expostos aos conceitos e práticas dos letramentos informacional, digital e crítico que a mesma ofereceu, no sétimo semestre de jornalismo da Escola da Indústria Criativa da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), todos os estudantes da turma afirmaram “ter ficado mais fácil identificar e desconstruir fake news, compreenderem e furarem as bolhas algorítmicas e realizarem buscas de forma muito mais eficaz e com resultados de qualidade na internet”.
A constatação acima é resultado de pesquisa realizada por Sandhra Cabral, junto a uma das turmas de alunos para a qual ela ministra a disciplina de educação midiática na USCS –, que virou artigo apresentado e publicado nos anais do 46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Intercom 2023.
Por meio do referido levantamento foi possível explorar os impactos da educação midiática na identificação e desconstrução de fake news, investigar a influência da disciplina no uso intencional da internet; destacar a relevância da educação midiática na formação de cidadãos críticos para o mundo midiático contemporâneo, orientar sobre o uso adequado e ético de inteligências artificiais na produção de conteúdos, recomendar a inclusão da educação midiática nos currículos da educação básica e do ensino superior e apontar a necessidade de formação de docentes para replicarem esses ensinamentos às suas turmas.
A pesquisa de campo foi feita com os estudantes do 7º semestre do curso de jornalismo noturno, que tiveram a disciplina de educação midiática implementada nesta universidade, como “tópico avançado” no currículo acadêmico, no primeiro semestre de 2023. A carga horária da disciplina é de 40 horas/aulas, e o conteúdo é distribuído ao longo de um semestre letivo, sendo ministradas 2 horas/aula semanais.
A técnica utilizada neste estudo consistiu na aplicação de um questionário estruturado por meio da plataforma Google Forms, composto por 21 questões, sendo 12 objetivas e 9 abertas, com base nos objetivos do estudo e com a finalidade de avaliar a experiência dos estudantes em relação à referida disciplina. A coleta de dados foi realizada entre os dias 23 de maio e 07 de junho de 2023.
Entre os resultados obtidos com o levantamento está a constatação dos benefícios que a educação midiática proporciona ao uso intencional da internet para trabalho, estudo e vida pessoal. Em particular, todos os respondentes afirmaram ter ficado mais fácil identificar e desconstruir fake news, após terem sido expostos aos conceitos e práticas da educação midiática. Além disso, o estudo revelou que 100% dos respondentes se sentem mais seguros em relação ao uso intencional da internet após terem cursado a disciplina. A totalidade dos entrevistados afirmaram administrar melhor o tempo deles na rede após terem tomado conhecimento das armadilhas que a procrastinação na rede pode gerar negativamente, e relataram melhor uso das inteligências artificiais, compreendendo sua estrutura, formação de bolhas algorítmicas e necessidade de checagem dos dados trazidos por elas.
Isso indica que o conhecimento adquirido na disciplina contribuiu para que esses estudantes desenvolvessem habilidades críticas e competências necessárias para navegar no ambiente digital de forma segura e consciente. Esses resultados sugerem que a implementação da educação midiática na graduação é essencial não apenas para as atividades acadêmicas, como para a vida pessoal e futuro profissional dos graduandos. Além disso, para 100% dos respondentes, ter tido educação midiática na educação básica faria a diferença na forma como lidam com a internet e com as redes sociais digitais bem antes de chegarem ao ensino superior.
Embora os nativos digitais – público que compõe a grande maioria das graduações e a totalidade da educação básica -, possuam gigantesca familiaridade inata com as novas tecnologias, surgem cada vez mais evidências de que essa competência intuitiva não se traduz em um uso intencional e eficaz da internet. O fato de terem extrema facilidade em lidar com a tecnologia não os torna habilitados para compreender, distinguir e usar de modo eficiente o conhecimento e conteúdos multimidiáticos disponíveis na rede mundial de computadores.
Segundo levantamento da OCDE com base no relatório Leitores do Século 21 – Desenvolvendo Habilidades de Alfabetização em um Mundo Digital, que abrange 79 países dentre eles o Brasil, em grande parte os jovens não são capazes de compreender nuances ou ambiguidades em textos online, localizar materiais confiáveis em buscas de internet ou em conteúdo de e-mails e redes sociais digitais, avaliar a credibilidade de fontes de informação ou mesmo distinguir fatos de opiniões.
As consequências desses dados são profundas para a inserção no mundo do trabalho e para o exercício da cidadania, uma vez que pessoas que não sejam capazes de compreender textos plenamente estarão, em teoria, menos aptas para ocupar empregos de alta complexidade e, ao mesmo tempo, tornam-se presas mais fáceis para o ambiente de desinformação e fake news que inunda a internet e as redes sociais.
Quase 90% dos brasileiros admitiram ter acreditado em conteúdos falsos, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, realizada em fevereiro deste ano, junto a 1.032 pessoas com 18 anos ou mais.
Habilidades superficiais x competências profundas
Os nativos digitais crescem em um ambiente no qual a tecnologia digital está sempre presente. Desde a infância, esses indivíduos têm acesso a uma vasta gama de dispositivos digitais e à internet, o que molda significativamente suas habilidades de aprendizagem, comunicação e interação social.
Embora demonstrem fluência impressionante no uso de dispositivos e plataformas digitais, em muitos casos, essa fluência é superficial, ou seja, estas habilidades não se traduzem diretamente em competências mais profundas e intencionais, como a capacidade de buscar informações de forma crítica, em sites seguros e validados, avaliar a veracidade das fontes, ou utilizar ferramentas digitais para a resolução de problemas complexos.
A utilização intencional da internet requer uma combinação de habilidades técnicas, cognitivas e socioemocionais, fornecidas pela educação midiática, que visa, sobretudo, o letramento informacional, além, obviamente, dos letramentos digital, crítico, audiovisual, autoral e intercultural.
Levando-se em consideração a dificuldade de uso intencional da internet, é possível listar alguns desafios enfrentados pelos nativos digitais, muitos deles já bastante conhecidos, mas não necessariamente solucionados pela educação formal:
Sobrecarga de informação: de acordo com a IDC, empresa de inteligência de mercado e consultoria de serviços estratégicos, todos os dias são gerados 2,5 quintilhões de bytes. Esses dados surgem das redes sociais digitais,conversas em aplicativos de mensagem, pesquisas realizadas em sites de busca,vídeos assistidos nas plataformas de streaming. Por isso, desenvolver a habilidade de filtrar essa massa de dados para encontrar informações relevantes e precisas é essencial. No entanto, muitos nativos digitais lutam para desenvolver essa competência. A sobrecarga de informação pode levar à fadiga cognitiva, bem como a desinformação pode gerar dificuldade em tomar decisões assertivas.
Pensamento crítico e avaliação de fontes: a educação midiática, que fomenta o pensamento crítico e analítico em relação aos conteúdos disponíveis na rede, é fundamental para a navegação eficaz na internet. Consumir conteúdos multimidiáticos, sem questionar a sua origem ou credibilidade, além de confundir o usuário, ainda provoca uma onda de compartilhamentos de fake news e todos os problemas advindos dela, entre eles, disseminação de discursos de ódio e distorções de fatos relevantes da realidade, como pudemos observar durante os primeiros dias da tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul. O fomento de habilidade de avaliar criticamente as fontes de informação é crucial para evitar e combater as informações falsas que se multiplicam nas sociedades contemporâneas.
Bolhas algorítmicas e inteligências artificiais: por meio da educação midiática é possível compreender como os algoritmos filtram informações, criando bolhas que reforçam visões preexistentes e limitam a exposição a ideias diversas, fomentam os discursos de ódio e preconceito. Reforça a necessidade de analisar criticamente os sistemas de IA, reconhecendo seus vieses e potenciais falhas, e tomando decisões conscientes e éticas sobre seu uso.
Procrastinação digital: a procrastinação digital é um fenômeno comum, e que, não raro, leva à dificuldade em manter o foco em atividades produtivas ou educativas. Por meio do letramento informacional, há a possibilidade de o indivíduo aprender a usar o tempo em que fica logado a seu favor, de forma produtiva, seja para atividades profissionais, educativas ou pessoais.
Privacidade e segurança digital: boa parte das pessoas não têm conhecimento profundo sobre como proteger suas informações pessoais online. Isso as torna vulneráveis a uma variedade de ameaças, incluindo roubo de identidade, phishing e outras formas de cibercrime.
Educação midiática e combate à desinformação
Sessenta e dois por cento dos usuários brasileiros da internet só acessam a rede pelo smartphone, e, em números absolutos, esse índice representa 92 milhões de brasileiros. Segundo especialistas, esse tipo de acesso é considerado limitado, já que a maioria das pessoas que consomem conteúdos via celular dispensam a checagem das informações por se tratar de navegação rápida e mais superficial.
Diante dessa informação, reforça-se a necessidade de letramentos informacional e digital, não apenas aos nativos digitais, como a todos os brasileiros, desde a infância. Esses dados são de pesquisa sobre o uso de tecnologias da informação e comunicação nos domicílios brasileiros – TIC Domicílios 2022, feita pelo CGI.br – Comitê Gestor da Internet no Brasil.
A educação midiática, nos anos iniciais da educação formal, prepara as crianças para lidarem com o mundo virtual, no qual estão submersas desde sempre. Já para os quase 9 milhões de alunos matriculados na graduação, segundo o Censo da Educação Superior do Inep/MEC de 2021, a introdução da disciplina ou a formação dos professores a fim de que a educação midiática se dê de forma interdisciplinar é latente e se faz urgente.
Em um mundo altamente conectado, com novas ferramentas disponibilizadas a cada dia, sendo as mais recentes aquelas a partir de inteligências artificiais, é preciso preparar crianças e jovens para usarem tais artifícios a favor deles e não deixá-los à própria sorte neste universo virtual, que é muito bom para quem sabe usá-lo intencionalmente, mas extremamente perigoso para aqueles que navegam munidos apenas das habilidades tecnológicas.
Fonte: Revista Ensino Superior